A necessidade fundamental das definições no discurso racional

O problema da ambiguidade conceitual
O debate Eberlin-Hime é um exemplo claro de como uma conversa entre pessoas inteligentes pode se tornar improdutiva quando falta o mais básico: definição clara de termos, escopo e categorias. Eberlin erra justamente aí. Ele não delimita os conceitos que utiliza, mistura níveis de discurso, como o científico, o filosófico e o religioso, como se fossem intercambiáveis, e evita traçar fronteiras conceituais sólidas. Quando isso acontece, não há argumento. Há apenas performance.
Essa negligência não é um detalhe. É a negação do pensamento racional. Toda argumentação pressupõe clareza conceitual. Sem ela, não há como distinguir validade de falácia, nem avanço de retórica circular. Se palavras como "informação", "complexidade", "ciência" ou "liberdade" mudam de significado no meio do raciocínio, qualquer conclusão passa a ser defendida com base em termos que já não são os mesmos. E se qualquer coisa pode significar tudo, no fim nada significa coisa alguma.
O fundamento lógico das definições
A lógica formal estabelece que um argumento só possui validade se os termos mantêm significado consistente. Isso não é uma convenção arbitrária, mas uma exigência estrutural do pensamento. Aristóteles, já no Organon, reconhecia que violar o princípio de não contradição torna o conhecimento impossível. Quem não define os termos não pode demonstrar nada, pois o discurso escapa do controle racional.
O uso ambíguo de termos é conhecido na lógica como equivocatio: quando a mesma palavra aparece com dois sentidos distintos dentro do mesmo argumento. Trata-se de uma falácia informal grave. O raciocínio perde consistência interna e se torna imune à análise crítica, justamente porque não há critério fixo para avaliação.
Sistemas funcionais como evidência empírica
Computação: definição como pré-condição de execução
Linguagens de programação fortemente tipadas como Haskell mostram com clareza a necessidade de definições precisas. O sistema de tipos é a espinha dorsal da linguagem. Cada função precisa declarar com exatidão o tipo de dado que recebe e o tipo que retorna. O compilador rejeita qualquer uso ambíguo. Isso não limita a expressividade, mas garante previsibilidade e segurança no desenvolvimento. Código sem definição não compila. No discurso, argumentos sem definição não se sustentam.
Falta de definição em código resulta em bugs e comportamentos imprevisíveis. No discurso racional, gera mal-entendidos, falácias e bloqueio intelectual. Não há como avançar quando os termos deslizam de um sentido a outro sem controle.
Matemática: axiomas como fronteiras do pensamento
A matemática moderna repousa sobre axiomas rigorosamente definidos. Desde os Principia Mathematica de Russell e Whitehead até os axiomas de Zermelo-Fraenkel na teoria dos conjuntos, tudo começa com delimitações formais. Os conceitos mais básicos, como número, conjunto e função, não são assumidos intuitivamente. São definidos com precisão, justamente para que qualquer inferência possa ser rastreada, verificada e reproduzida.
A crise dos fundamentos no início do século XX, marcada pelos paradoxos de Russell e Cantor, surgiu justamente da ambiguidade nos conceitos básicos. Sua superação não veio com relativismo, mas com definições mais estritas. O avanço dependia disso.
Física: quando o erro conceitual compromete o experimento
Na física, confundir conceitos similares compromete a teoria e inviabiliza o experimento. Distinguir massa de peso, calor de temperatura, força de energia, não é pedantismo. É condição para operar com precisão. A física de Newton e a de Einstein diferem, entre outras coisas, por adotarem definições mais refinadas de espaço, tempo e energia. Avanços científicos muitas vezes começam com ajustes conceituais. É assim que o pensamento progride.
Direito: sem definição, não há justiça
No direito, o impacto da definição é direto. Conceitos como pessoa, responsabilidade, propriedade e liberdade são estruturantes. A jurisprudência existe para garantir que esses termos não sejam manipulados conforme a ocasião. Decidir um caso exige saber o que se entende por cada um desses conceitos. Mudanças arbitrárias de definição não produzem flexibilidade jurídica, mas sim insegurança institucional.
Se um juiz muda o que entende por dano moral de um caso para outro, o sistema deixa de ser racional e se torna voluntarista. Sem definição, não há isonomia nem previsibilidade. O resultado não é justiça adaptável, mas caos disfarçado de interpretação.
Filosofia e o rigor conceitual
Filosofia analítica: clareza como exigência de sentido
Na tradição analítica, clareza conceitual não é uma virtude opcional. É pré-requisito de sentido. Russell sustentava que muitos problemas filosóficos são pseudo-problemas criados por linguagem confusa. Wittgenstein, no Tractatus, afirmou que os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. Ou seja, não podemos pensar aquilo que não conseguimos expressar com precisão. A confusão semântica não é apenas erro de forma, mas obstrução da própria atividade racional.
Filosofia germânica: termos como estruturas argumentativas
A tradição filosófica alemã se destaca pela construção sistemática de termos. Não se trata apenas de nomear ideias, mas de articular estruturas conceituais inteiras. O termo Weltanschauung, por exemplo, junta "Welt" (mundo) com "Anschauung" (visão ou contemplação). Trata-se de uma visão de mundo como totalidade ordenada, não uma mera opinião pessoal. O próprio termo exige uma posição filosófica integrada.
Na tradição reformacional neocalvinista, Herman Dooyeweerd segue essa linha com ainda mais rigor. Um exemplo notável é o termo tijdslijkheidskarakter: caráter de temporalidade. Ele é composto por:
- "tijd" = tempo
- "lijkheid" = qualidade ou condição (como em possibilidade ou visibilidade)
- "karakter" = caráter, estrutura fundamental
Não se trata de um enfeite lexical. O termo carrega dentro de si o argumento de que toda realidade criada possui uma estrutura temporal, em contraste ontológico com a eternidade do Criador. A definição já entrega o núcleo da tese. O termo é a tese condensada.
Em Dooyeweerd, a definição não vem depois do pensamento. Ela inaugura o sistema e organiza sua direção. Os termos não são meros rótulos. São ferramentas de construção. E o rigor começa aí.
A definição como ato de construção
Definir não é apenas descrever. É estabelecer os limites dentro dos quais o raciocínio pode operar. Assim como não se joga xadrez sem regras fixas, não se argumenta sem conceitos definidos. Sem isso, não há como avaliar se algo faz sentido, se é válido ou se contradiz o que foi dito antes.
Sem definição, toda palavra se torna um convite à confusão. Pode significar qualquer coisa. E quando tudo significa tudo, estamos falando no vazio. O Gato de Cheshire disse isso com clareza: para quem não sabe aonde quer chegar, qualquer caminho serve. Mas quem quer construir um argumento precisa saber de onde parte, quais ferramentas está usando e quais caminhos são inválidos. E nada disso se faz sem definição.
O colapso da razão sem definição
Quando alguém se recusa a definir seus termos, ou pior, os altera conforme a necessidade do momento, não está mais argumentando. Está apenas jogando palavras ao vento. E palavras soltas, sem amarra conceitual, não constroem nada. Elas servem apenas à retórica e à manipulação emocional. Isso gera uma forma de relativismo metodológico, onde nem mesmo os critérios de avaliação são estáveis.
Nesse cenário, tudo pode ser dito, mas nada pode ser avaliado. A racionalidade se desfaz. Não há avanço, só estagnação disfarçada de pluralismo.
Conclusão: definição como raiz da razão
Definir não é formalismo acadêmico. É o ato inaugural da razão. Sem definição, não sabemos se nossos argumentos são válidos. Não sabemos sequer quais são nossos objetivos. Não há como construir saber, avaliar mérito ou estabelecer diálogo crítico. A definição é o que torna o discurso possível.
Por isso, a primeira pergunta de qualquer debate sério não deveria ser "o que você pensa?", mas sim: do que estamos falando, exatamente? A resposta a essa pergunta define se haverá discussão racional ou apenas uma sucessão de frases sonoras que, no fim, não dizem nada.