A Natureza Interpretativa das Ideias: Por que a Propriedade Intelectual Nega a Essência do Conhecimento

Existe uma ilusão recorrente na forma como tratamos a autoria: a de que uma ideia pode ser possuída. Como se fosse possível cercá-la, nomeá-la e protegê-la com cadeado. É daí que nasce a noção de propriedade intelectual. Mas o que acontece com uma ideia quando ela é compartilhada? O que exatamente está sendo protegido?

Minha proposta é simples. Uma ideia só é minha enquanto está na minha cabeça. A partir do momento em que a expresso, seja em um quadro, num texto, numa música ou num trecho de código, ela já não me pertence no mesmo sentido. Ninguém que a consome acessa o que existe em mim da mesma forma. Toda recepção é interpretação. Toda interpretação é, por si só, uma criação.

O conhecimento não é transmitido como se transmite um objeto. Piaget mostrou que o saber é construído internamente pelo sujeito, a partir da interação com o meio. Vygotsky foi além e defendeu que todo desenvolvimento intelectual é mediado por linguagem e contexto social. Ninguém recebe uma ideia pronta. Um livro não transfere o que penso, apenas facilita que o outro construa algo a partir do que leu. Um professor não entrega saber, mas orienta a construção do saber pelo aluno.

Isso vale para toda forma de expressão. Quando alguém lê o que escrevo, o que compreende não é exatamente o que pensei. O leitor reconstrói a ideia com suas próprias categorias, linguagem e experiências. Hans-Georg Gadamer afirma que toda interpretação é um diálogo entre horizontes, o do autor e o do leitor. Mas esses horizontes nunca se fundem completamente. Sempre há distância. E é nesse espaço que nascem novas ideias.

Por isso, não é correto dizer que uma ideia permanece intacta quando circula. A obra pode ser a mesma, mas o significado é outro. A interpretação é inevitavelmente singular. Wittgenstein reconheceu isso ao afirmar que o significado de uma palavra está em seu uso. Uma pintura como o Abaporu, por exemplo, pode não ter exigido técnica refinada ou esforço prolongado. Mesmo assim, isso é irrelevante. O valor está no impacto, na leitura que provoca, no mundo interno que desperta. E esse mundo será sempre diferente para cada pessoa.

A defesa comum da propriedade intelectual apela para o esforço, a originalidade ou o tempo dedicado pelo autor. Mas esse critério é subjetivo e seletivo. Existem obras feitas em minutos que têm impacto eterno. Existem códigos simples que mudaram o mundo. Existem artes de aparência banal que geram debates profundos. E, acima de tudo, não existe obra absolutamente original. Kropotkin já dizia que a criação intelectual é sempre coletiva, mesmo quando expressa individualmente. Ninguém cria do nada. Toda criação parte de influências, referências e redes históricas de pensamento.

Tentar controlar uma ideia depois que ela foi expressa é negar sua natureza. Ideias são, por essência, interpretáveis, mutáveis e comunais. Michel Foucault, ao refletir sobre a figura do autor, sugeriu que a autoria é um mecanismo de controle discursivo. Ela não marca apenas quem criou, mas impõe limites sobre como os discursos podem circular.

A propriedade intelectual transforma ideias, que são naturalmente férteis e compartilháveis, em mercadorias. Torna o conhecimento escasso e controlado. Mas essa escassez é artificial. Proudhon dizia que propriedade é roubo, e nesse caso, trata-se do roubo da possibilidade de outros criarem a partir do que receberam. A ideia expressa não é mais minha. É nossa. Não no sentido jurídico, mas no sentido epistêmico. Aquilo que você entendeu do que escrevi já é diferente do que eu quis dizer. E o que você fará com isso será ainda mais distinto.

Uma ideia que não pode ser transformada por outros é uma ideia morta. A única forma de mantê-la viva é permitir que ela gere outras, mesmo que escapem do meu controle.

Propriedade intelectual é um rótulo que tenta congelar o que, por natureza, é dinâmico. Quando se trata de ideias, controle gera estagnação. Liberdade gera fertilidade.